A indigência de Deus
Atualmente há uma diversidade de imagens de Deus no cristianismo, inclusive aquelas que justificam algumas atrocidades sociais como combate até a direitos fundamentais da pessoa humana. Por isso, há uma necessidade de nos perguntarmos ‘quem é Deus?’, ou ao menos, ‘a que Deus eu sigo?’. Nesse sentido a espiritualidade franciscana faz com que todos aqueles que abraçam esse carisma sigam um Deus muito específico. Esse é um Deus indigente no mais profundo dessa palavra que etimologicamente significa aquele que é miserável, necessitado e pobre. O indigente é aquele que não consegue suprir suas próprias necessidades e, por isso, é dependente. E sabemos que não somente é dependente, mas é esquecido, desprezado, excluído, ao seja, não deveria existir, viver, estar na sociedade.
Por mais estranho que pareça Deus escolheu a indigência. E por mais incrível ainda, foi sua indigência que fez com que todo aquele que é indigente tenha valor na nossa humanidade. Cabe a trava línguas ou o jogo de palavras: a indigência dos indigentes não os faz menos gente! E isso por quem nosso Deus escolheu ser, e foi e continua sendo, na sua experiência encarnada. Já dizia santa Clara na sua primeira carta a Inês de Praga: “tão grande Senhor, [...], quis aparecer no mundo, desprezado, indigente e pobre, a fim de que os homens, os mais pobres e indigentes, sofrendo demasiada indigência de alimento celestial, se tornassem n´Ele ricos detentores de Reinos celestes” (1ºCtIn).
A espiritualidade franciscana tem por centralidade o Cristo; e esse, POBRE. Toda a experiência de Francisco com os pobres e leprosos fez com que ele lesse o EVANGELHO com esse olhar. Seus encontros com os pobres significaram seus encontros com Deus. Isso porque não se pode dissociar um do outro: o encontro com os pobres e leprosos eram os encontros que ele tinha com Deus.
Assim, Francisco e o movimento franciscano nesses 800 anos continuam a experimentar o Deus que se abaixou e, em sua generosidade, “se fez pobre, embora fosse rico” (2Cor 8, 9). Deus que é aquele do cântico da carta aos filipenses (Fl 2, 6-11) que não se apega à sua riqueza que é a divindade, mas despoja-se, deixa tudo que tem para se fazer um de nós: ser humano. É o Deus que assume nossa carne, nosso modo de ser e existir, assume nossas limitações humanas, nossa historicidade, temporalidade. Se faz um conosco. É o Deus-Emanuel.
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Esse assumir nossa condição não foi em qualquer lugar ou realidade humana. Deus poderia sim ter assumido nascer em palácio, crescer em grandes reinados, morrer em condição de rei. Porém, ele escolhe ao abaixar à nossa carnalidade, abaixar até os últimos; ao escolher, por amor, nossa condição humana, ele abraça a nossa indigência.
Os três pilares da espiritualidade franciscana – presépio, cruz e eucaristia – ajudam a compreender a indigência de Deus.
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O primeiro é o presépio. Toda a encarnação do Verbo já tem a ver com a escolha da pobreza, porém, a família, o lugar apresentado pelos narradores dos evangelhos da infância de Jesus e os que o acolhem tem muito a nos dizer (Mt 1-2; Lc 1-2).
O Verbo escolheu um lar que é o de Nazaré, aldeia essa que nem consta em outro livro além dos Evangelhos demonstrando a sua insignificância. Se encarna em Maria, uma jovem-virgem solteira, ou seja, escolhe a condição de exclusão social para se abrigar – ser mulher naquele tempo já era ser desconsiderada, e ser jovem, virgem e ainda não casada tinha o mesmo valor de uma mulher estéril ou idosa, ou seja, não é fértil, não tem prole, ainda não frutificou, por isso ainda mais relegada ao último lugar. Ele tem por pai, José, um trabalhador braçal, carpinteiro, não um intelectual, ou alguém do império ou do poder religioso.
Os relatos da infância apresentam o nascimento de Jesus (o Verbo ganha um nome, uma história, é localizado numa família, em um lar) em um recenciamento, colocando seus pais na condição de peregrinos, de refugiados, de forasteiros de sua terra. E mais, não tendo lugar dentro da casa, nasce no estábulo, ou melhor, no curral. É acolhido como hóspede pelos animais e não pelas pessoas. É deitado na manjedoura, no coxo onde comem os animais e não num berço ou cama. A primeira visita que recebe é dos pastores que eram pessoas excluídas, mal vistas, consideradas, muitas vezes, como ladrões por levarem seus animais a pastagens alheias às suas. Os primeiros presentes são dados por estrangeiros, magos que na cultura daquele povo não poderiam ser pessoas de confiança por não ser um dos seus.
O presépio é todo pobreza, indigência.
Em segundo lugar, como pilar, temos a questão da cruz como condição de pobreza e indigência. Além do Verbo assumir nossa condição de seres humanos ele, por sua fidelidade ao projeto do Reino de Deus, sofre a paixão e morre como indigente (Mt 26-27; Mc 14-15; Lc 22-23; Jo 18-19).
Jesus é preso por questões tanto políticas quanto religiosas. É nesse processo de prisão maltratado, humilhado e torturado; sobre chacotas ao ser coroado com espinhos; é açoitado numa coluna; ou seja, sofre torturas físicas, morais e psicológicas. Além disso é obrigado a carregar seu objeto de suplício, a cruz. Perde a companhia da maior parte dos seus seguidores, quase todos somem, contendo inclusive aquele que nega ser um dos seus. Assim, deixado pela maioria, morre no abandono dos indigentes.
Por companhia tem os ladrões que também sofrem a tortura e a morte; na cruz é pregado como bandido entre outros. Não foi torturado na cruz como um “santo” entre dois ladrões, ele é colocado como mais um bandido entre bandidos. Um “traidor” do estado e da religião não somente é considerado bandido, mas é bandido. E, por fim, morre nu, na cruz, indigente e pobre, e é sepultado em um túmulo emprestado.
No terceiro pilar temos a eucaristia. Esta nasce em três momentos importantes da vida de Jesus que é sua trajetória, a última ceia e a cruz.
Esta trajetória começa em trinta anos de anonimato, passa por cerca de três anos de itinerância, como andarilho, não tendo onde reclinar a cabeça (Mt 8,20), considerado como louco por seus parentes (Mc 3,21), andando com pessoas marginalizadas e excluídas, curando os últimos, tendo atitudes de rebaixamento e ensinando a assim procederem – por exemplo, temos a passagem do evangelho quando perguntam sobre o divórcio (Mt 19, 1-9), Jesus poderia ter colocado a mulher no mesmo patamar do homem, podendo não somente eles divorciarem, mas também elas, porém ele coloca o homem rebaixado à mesma condição que vivia a mulher como alguém que não tem direito de se divorciar –; toda a vida de Jesus é marcada pela escolha dos últimos e preferência pelos mais excluídos.
Já na última ceia (Mt 26 17-29; Mc 14, 12-25; Lc 22, 14-20) vemos aquele que entrega aos outros tudo o que tem: dá seu corpo e seu sangue em alimentos simples e desprezíveis. O pão é sinal de simplicidade e humildade, o vinho de alegria e festa. A nova festa é marcada pela austeridade. Essa vivenciada na casa, na intimidade, no lugar do desnudamento; não no Templo onde se tem distância, onde só entram os privilegiados ou os que tem um poder religioso.
E no relato joanino da última ceia (Jo 13, 1-20) a inversão que Jesus ensina em toda a sua vida ele reafirma no gesto do lava-pés. Aquele que preside a casa e a mesa, no caso Jesus, se coloca como servo de todos, como o menor, numa inversão evangélica. A mesa eucarística é o lugar dos irmãos que compartilham o alimento e a vida, dá-se a conhecer. E essa mesa de irmãos é marcada não pela maioridade do irmão mais velho, mas pela pequenez do irmão mais novo que está submetido a todos. O grande só tem grandeza no serviço mais pobre e humilde. O desprezo e a indigência se tornam condição de seguimento a Deus.
Já na cruz, gesto eucarístico por excelência, ele entrega o alimento total que é seu próprio corpo e sangue. Jesus doa tudo aos seus, seu corpo e seu sangue, ou seja, sua história encarnada e seu espírito, sua vida. Nada mais ele tem na cruz! Ele está nu, transpassado pelos cravos! Só pode dar a si mesmo em seu sacrifício. Por isso, o lado aberto pela lança, ao jorrar sangue e água sacraliza o gesto da partilha da pobreza do pão e do vinho.
A eucaristia, como alimento pobre dos pobres, é continuada em toda a história da igreja como mesa de todos, alimento para todos, fortalecimento para o caminho.
Por fim, podemos concluir que o Deus se fez indigente para santificar toda a criação. Ao viver nossa condição humana, e, condição mais desprezível de indigência, Deus elevou toda a criação à realidade de bondade. Isso, porque ele mesmo experimentou cada margem da existência, cada periferia da criação. A encarnação, morte e ressurreição de Cristo é o gesto mais sublime do amor de Deus, porque escolheu humilhar-se para que tudo que poderia ou pode estar em realidade humilhante esteja agora amado por Deus, santificado por Ele, divinizado porque ele mesmo viveu essa mesma condição.
Isso compromete!
Seguir o Deus da indigência faz com que tenhamos uma responsabilidade, um cuidado e um compromisso com TODOS, e ainda de forma mais especial e primeira, pelos mais pobres, excluídos, marginalizados, inferiorizados, a todos aqueles que são as minorias do nosso tempo. E lembremos: não como grandes, superiores, maiores, melhores e mais preparados ou condicionados, mas como servos, como últimos, como, também, indigentes.