A liberdade do Espírito na ‘não-identidade’: A relativização das ‘personas’ na espiritualidade franciscana
Discutimos em diversos momentos de nossa caminhada na vida religiosa a temática ‘identidade religiosa’ e/ou ‘identidade franciscana’. Queremos sempre encontrar um denominador comum: o que é ser frade, ser irmão, estar no seguimento de Jesus Cristo. Preocupamos tanto que tendemos a conceituar o que é Vida Religiosa Franciscana e até mesmo ensinamos a nossos formandos. Como se fosse mais uma ‘disciplina’ de uma escola ou faculdade.
Por vezes, pensamos em uma identidade fixa: ser religioso tem essa e aquela característica e assim queremos que ela surja. Logo, todo aquele que adere a formula apresentada se transforma em um religioso. Mas se pensamos bem isso é apenas aparência. Somente rótulo de um frasco. Enquanto estivemos em construir uma identidade – fixada em formulas – contrariamos a verdade do modo de operar do Espírito.
Ser frade clérigo é passar pela filosofia, pela teologia e se ordenar. Ai ele está pronto. Pode ir para pastoral e fazer sua missão. Ser frade leigo e ter uma formação diferenciada, fazer este ou aquele curso e depois de um tempo formativo, exercer o que aprendeu. Pronto! Todos são frades. Com seus ofícios, com suas identidades. Ou melhor dizendo, com suas ‘personas’ – modo de ser externo. Alguns vão chamar de ‘identidade’ e até mesmo de ‘corporificação do carisma’.
Entretanto, a ‘identidade’ neste sentido fixado, impede o surgimento da ‘não-identidade’. Se o Espírito, que é o fundador de nosso carisma, está aprisionado em uma forma, ele não mais atua, mas é um ovo sem conteúdo. O ‘pássaro’ que estava nele já se foi, está voando por aí. O que ficou foi a casca nada mais. Corremos o risco de fixamos em ‘cascas’, em identidades rígidas e perdermos o Espírito. Aprisionados em normas, formulas, estruturas. Surge dai o tédio que é o sintoma dessa petrificação do carisma que fugiu a abertura de espírito.
O tédio, febre da alma, indica que perdemos a fluidez do Espírito. A energia pode ter deixado nosso coração, aí tudo vira norma e confirmação de nosso endurecimento. As identidades que nascem daí são rígidas, sejam elas conservadoras ou libertárias, ou de uma profissão adquirida, do ser clérigo, etc. todas, nesse nível, servem a uma única coisa: o orgulho que nasceu no terreno do tédio, da falta de sentido, do distanciamento do elã, já que as identidades fixas faz despertar o contrário da ação do Espírito.
O profetismo que é característica de nosso carisma, nas identidades fixadas, não passa de espiritualismo vazio, teorias desenraizadas, rigidez dos ministérios, etc. Franciscanismo vira devoção vulgar. São Francisco aparece mais na época das novenas, das festas sociais, de teorias bem formuladas. O afeto se apresenta como contrariedade a história. Nosso ‘pai seráfico’ e sua ‘escola’ passam a ser legitimadores de posturas cômodas e incongruentes com a missão professada.
A ‘não-identidade’, que é aquele aspecto livre de qualquer fixação e rigidez, porta aberta para o modo de operar do Espírito, assusta é e mal compreendida em um mundo que se busca as aparências.
Somos todos irmãos, se somos pobres. Não devemos querer ser frades clérigos ou leigos – como papeis. Sejamos irmãos de toda criatura, porque vemos em tudo a fluidez da criação. Tudo é gratuito como é a graça de Deus. E para que essa mesma graça perpasse por nós, não devemos ter identidade no sentido de rigidez, mas ser sempre abertos à dinâmica do Espírito, na ‘não-identidade’, no fruir do verdadeiro ‘ministério’.
Somente sendo irmão, aceitando a contrariedade e o sofrimento dos ‘sem-identidades’, podemos dizer como Francisco de Assis: “Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã nossa, a morte corporal, da qual nenhum homem vivente pode escapar”. (CIS). Se permanecermos com nossas identidades, valorizando-as acentuadamente, jamais seremos capazes de dizer o que disse São Francisco sobre a morte. Por isso, a ‘não-identidade’, a não-fixação, ou a pobreza, deve ser nossa meta. Fixar em papeis, sejam eles quais forem – provincial, guardião, ordenado, leigos, clérigo, etc.. – contraria nossa verdadeira ‘identidade’.
Não somos frades leigos ou clérigos. Somos irmãos gratuitos, abertos a dinâmica do modo de agir do Espírito.
Entretanto, é um trabalho ardo no mundo atual conseguimos refletir tal temática, mesmo entre os religiosos, pois hoje vivemos em função de papeis sociais. Ser visto, ter isso ou aquilo. Logo, na contemporaneidade sofremos de uma anemia espiritual e de uma supervalorização do exterior, do aparentar ser. Falar para um jovem que adentra a vida religiosa da abstinência de papeis é muito duro, pois, na maioria das vezes, busca-se por ‘persona’ que dê segurança. O trabalho é lento e todos, com o passar do tempo, perceberão o que é mais importante, deixando que a ‘não-identidade’ surja.
Aprofundar a reflexão para além das ‘personas’ é superação das diferenciações internas entre clérigos e leigos, cargos e sem cargos, profissão ou sem profissão, etc. Somente no Espírito poderemos relativizar as ‘personas’, necessárias, mas não exclusivas. Saber que elas são temporárias e que não são constituintes daquilo que somos, mas apenas expressam uma realidade de várias possíveis.