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Com Francisco e Clara de Assis, a Alegria do Encontro com o Evangelho

Publicado por Frei Luiz Pinheiro Sampaio | 12/10/2014 - 17:49

Introdução

 

Qual é o jeito franciscano de se abraçar e viver o Evangelho hoje? O que os dois santos de Assis nos ensinam a esse respeito? Antes de tudo, devemos saber que a “perfeita alegria” de Francisco e Clara, e igualmente de cada franciscano e franciscana de todos os tempos, consiste fundamentalmente na experiência jovial e encantadora do Evangelho. Isso corresponde ao desdobramento de um encontro com o Crucificado que deixou marcas profundas nos corações daqueles dois jovens da então comuna de Assis. O mesmo se poderia afirmar em relação àqueles e àquelas que hoje vibram de entusiasmo por causa de um encontro autêntico e dinâmico com a proposta de Jesus Cristo.

A partir do horizonte do encontro com o Evangelho, muito felizmente realizado por Francisco e Clara de Assis, queremos pontuar brevemente alguns elementos significativos e decisivos  dessa experiência afetiva e efetiva. Para isso, vamos ter como apoio alguns textos das Fontes franciscanas e clarianas, e reflexões de alguns autores que trabalham a questão com mais detalhes e também a exortação apostólica do papa Francisco, Evangelii Gaudium. A nossa intenção, portanto, é sublinhar o sentido e o efeito do encontro de Francisco e Clara de Assis com  Jesus Cristo (o Evangelho) e, sobretudo, o que isso implica na vida do franciscano e da franciscana de hoje.

 

1. Dois jovens e muitos ideais

 

Francisco e Clara, antes da “descoberta” do Evangelho, foram jovens com o mesmo vigor juvenil dos outros jovens da pequena cidade de Assis, cravada nas encostas do Monte Subásio. Sofreram as influencias dos ideais cavalheirescos e de nobreza da sociedade da época. Sonharam, como os rapazes e moças daquele tempo, com grandeza e prestígios. Queriam ser lembrados como heróis das canções de gesta[1]. Além disso, as famílias a que pertenciam projetavam-nos sob o viés da ascensão social, política e econômica.

As fontes hagiográficas retratam a atmosfera dos ambientes familiares em que nasceram e cresceram esses dois jovens. São jovens naturais, normais e repletos de sonhos, valores e aspirações. De um lado, temos Francisco, ávido de grandeza e galã da juventude de Assis[2]. Queria ser, como outros jovens, cavaleiro, ter títulos de nobreza, ser poderoso, importante, prestigiado e aplaudido por todos[3]. Depois de mudanças profundas, renunciou a todas as ambições[4]. Por sua vez, a jovem Clara, muito nobre de costumes[5], recusou o casamento planejado pela família[6] e, contrariando os parentes, se deixou contagiar por Francisco[7]. Afinal, duas figuras afins que abraçaram o mesmo ideal de vida, trilhando os caminhos da “perfeita alegria”, sem poderes ou títulos.

 

2. “É isso que eu quero, é isso que eu procuro…”

 

Francisco, no início da conversão, estava com o coração inquieto. Desejava descobrir a vontade de Deus a seu respeito. Nisso, não cansava de perguntar: “Senhor, que queres que eu faça?”[8]. E com a mesma intensidade, rezava: “Altíssimo e glorioso Deus, iluminai as trevas do meu coração…”[9]. Um homem, portanto, necessitado de Deus. Uma pessoa que buscava incansavelmente conhecer a proposta de Deus. Procurava uma resposta para as inquietações do seu coração.

As buscas de Francisco culminaram num encontro único e inesquecível. A Porciúncula foi o lugar especial para a realização do encontro com o Evangelho. De acordo com Tomás de Celano, essa “porção de chão”, dedicada à Virgem Maria, foi onde o Poverello escutou o texto do evangelho sobre a missão dos apóstolos. Depois de ter entendido o significado da passagem, explicada pelo sacerdote, ele saltou de alegria e exclamou: “É isso que eu quero, é isso que eu procuro, é isso que eu desejo fazer de todo o coração!”[10].

Certamente, ao saltar de alegria por ter encontrado o que há tempo procurava, Francisco abria sua vida a um horizonte mais significativo. O que “eu quero, procuro e desejo” expressava a densidade do crescimento e amadurecimento, da persistência e insistência na busca de algo que daria sentido aos anseios essenciais. Nesse sentido, Frei Prudente Nery (in memoriam) afirma que a experiência de Francisco compreendia: “Deus e sua gratuidade, o homem e sua sensibilidade, o tempo e suas vicissitudes, ou a história e suas características[11]. Portanto, a busca de Francisco parte da iniciativa de Deus no chão de sua vida[12].

 

3. “Não fora ouvinte surdo do Evangelho…”

 

Indubitavelmente, a alegria de Francisco é consequência de alguém com os ouvidos abertos para escutar e viver o Evangelho. Tomás de Celano e outros biógrafos enfatizaram a diligência e o cuidado de Francisco quando se encontrava (ouvia) o Evangelho: “E ansiava por cumprir com a máxima diligência e reverência as outras coisas que ouvira. Pois não fora um ouvinte surdo do Evangelho, mas, cofiando o que ouvira à louvável memória, cuidava de cumprir tudo à letra diligentemente”[13].

Unicamente isso! Não só fora um ouvinte atento, mas também um praticante daquilo que escutava. Prescindindo disso, Francisco não teria sido capaz de compreender os apelos de Deus dirigidos ao seu coração, como por exemplo este: “”Francisco, vai e repara minha casa que, como vês, está em ruínas”[14]. Sem a mesma disposição, seria também impossível aos seus irmãos e irmãs, de ontem e de hoje, alcançar a “perfeição evangélica” ou ainda o autêntico seguimento de Jesus Cristo.

Por isso mesmo, a postura afetiva de Francisco diante do Evangelho, levava-o a uma atitude efetiva dos valores evangélicos. Evidentemente, o jeito reverente do Homem de Assis suscitava (e suscita) no homem e na mulher franciscanos de todas as épocas gestos afetivos e efetivos no encontro (e depois desse encontro) com Jesus Cristo, evitando assim a futilidade do encontro e a vaidade dos valores fundamentais.

 

 4. “Olhe dentro desse espelho todos os dias…”

 

Clara de Assis, a “plantinha” do bem-aventurado Francisco, foi a “primeira franciscana” por excelência que encarnou o espírito evangélico do Poverello. O ambiente de contemplação do mosteiro de São Damião em que viveu, estava cercado dos ideais de pobreza, de simplicidade, de humildade, de oração, de trabalho e de sororidade[15]. Foi aí que ela e suas companheiras observaram resolutamente, por toda a vida, o Evangelho. Praticaram-no com alegria sob o signo do “privilégio da pobreza”, sem nada de próprio, dependendo das esmolas[16].

O convite de Clara à companheira Inês, para que continuasse crescendo, alegremente, no ideal evangélico da pobreza, era para que ela olhasse diariamente dentro do Espelho e espelhasse nele o próprio rosto, a fim de unir-se espiriutualmente ao esposo, Jesus Cristo e, assim, deixar-se transformar por Ele, revestindo-se das virtudes essenciais[17].

Este convite para olhar-se, “interior e exteriormente”, no Espelho[18] indicava um encontro cotidiano com o Evangelho (a Palavra), ou seja, uma experiência mais profunda dos valores que significam os horizontes concretos do dia a dia, como: a escuta de Deus, o sentido da vida, a acolhida do outro, reverência ao diferente, o cultivo dos dons, a partilha das aptidões, o aquecimento da convivência, o desprendimento das coisas, a gratuidade dos serviços.

Inegavelmente, ao colocar a mente e a alma “no espelho da eternidade”[19], Inês tornou-se capaz de despojar-se das vanglórias, dos títulos, da soberba, do egoísmo, do individualismo, para desposar Jesus Cristo e revestir-se das virtudes, com as quais se revestiram Francisco e Clara: pobreza, simplicidade, humildade, caridade, obediência, castidade, cordialidade e amor a todas as criaturas. Portanto, olhando-se no Espelho e através do Espelho, Inês pôde realizar-se (e cada franciscano o pode hoje) no encontro cotidiano, único e essencial, com o Evangelho.

 

5. “Não perca de vista seu ponto de partida…”

 

A pessoa precisa de um referencial na vida para alicerçar suas opções e decisões.  Francisco e Clara tiveram como referencial o Evangelho, escutado, meditado e vivido. Os ideais que abraçaram brotam dessa fonte original. Suas regras ou o “propositum vitae” (o propósito de vida) tem como ponto de partida e de convergência a pessoa de Jesus Cristo (o Evangelho do Pai). Os irmãos e as irmãs dos Santos de Assis não podem prescindir dessa realidade fundante. Em outras palavras, precisam recordar sempre o princípio motivador da decisão primeira.

Certamente, é nesse sentido que Clara se dirigiu a Inês: “Lembre-se da sua decisão como uma segunda Raquel: não perca de vista seu ponto de partida, conserve o que você tem, faça o que está fazendo e não o deixe”[20]. O texto reflete a força e o significado do referencial como princípio fundante de um caminho ou ideal abraçado. Caberia, portanto, a Inês esforçar-se para conservar, cuidar da graça, o fruto do encontro com o Evangelho.

A expressão, “não perca de vista o seu ponto de partida”, antes de ser um mantra ou refrão, é uma motivação para que Inês[21]  permanecesse firme no caminho, sem jamais esquecer o propósito. Implicava também para Inês um retorno ou reencontro constante com Jesus Cristo na Palavra, na Eucaristia, na vida comunitária e nos desafios de cada dia. Sendo assim, era preciso manter viva a chama do primeiro encontro com o Evangelho. Assim o fizeram Francisco e Clara quando abriram mão de todos os interesses pessoais e fizeram opção pelo Amor marginalizado, despido de todo tipo de poder, mas revestido de todos os valores.

 

Conclusão

 

         A “perfeita alegria”, em chave franciscana, brota do encontro sereno e autêntico com Evangelho. O franciscano e a franciscana de hoje não podem perder de vista esse referencial. Cabe aos irmãos e irmãs de Francisco e Clara testemunhar ao mundo a beleza da vida evangélica. Nesta perspectiva, queremos concluir a nossa reflexão com base em dois pontos de vista convergentes: o primeiro de Frei Prudente Nery e o segundo do Papa Francisco.

Frei Prudente Nery expressa o seguinte: “Francisco convoca-nos a andar por outras trilhas (…).Interpela-nos a jamais esquecermos a partilha do pouco que somos e temos, a solidariedade dos pequenos gestos, que se não são suficientes para afrontar a frieza do mundo e os abusos contra as criaturas, nem debelar a complexidade das dessimetrias sociais e econômicas e a miséria das maiorias, a violência das guerras declaradas ou não, pelo menos poderão ser um alívio e um raio de esperança, a fim de, neste mundo, jamais sejam as trevas assim tão escuras, que os últimos não vejam pelo menos um raio tênue de luz na noite de seus sofrimentos[22].

         O Papa Francisco, na sua primeira exortação apostólica, Evangelii Gaudium (EG), de 24 de novembro de 2013, sublinha alguns aspectos que vão de encontro ao que refletimos até aqui.  Ele começa dizendo: “A Alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus” (EG 1). E essa alegria é de tal modo incomparável que “nada e ninguém nos poderá tirar” (EG 84). Num mundo de relações humanas superficiais e frias, o Papa ressalta o sentido da encarnação: “Na sua encarnação, o Filho de Deus convidou-nos à revolução da ternura” (EG 88). E frente aos muitos outros desafios da atualidade, o Papa Francisco chama a atenção: “Não deixemos que nos roubem a comunidade!” (EG 92). Mais adiante: “Não deixemos que nos roubem o ideal do amor fraterno!” (EG 101). E principalmente: “Não deixemos que nos roubem o Evangelho!” (EG 97).

         Apoiados nas citadas exortações do Papa e inspirados em Francisco e Clara de Assis, nós, os membros da Família Franciscana, não podemos permitir que os pecados do egoísmo, do individualismo, do consumismo, da exclusão, da intolerância e da morte sem sentido, nos roubem a singularidade da vida, o diálogo, a hospitalidade, a convivência. Não deixemos que nos roubem a “perfeita alegria”, a alegria do Evangelho. Não deixemos que nos roubem também o irmão, a irmã, a fraternidade. Igualmente, não deixemos que nos roubem a pobreza, a simplicidade, a humildade, a cordialidade, o sorriso!

 

FONTES

 

 

 


[1]  Gênero literário poético que masceu e se desenvolveu na França medieval, desde o século XI até ao século XIII. Este tipo de composição, de carácter épico, se referia aos feitos históricos de povos ou heróis, às guerras históricas e aos dramas lendários. Para mais detalhes confira http //www.edtl.com.pt/index.php?opti>

[2]  cf. 1Cel 1-2

[3]  cf. LM I,3; LTC 5

[4]  cf. LTC 19; AP 8

[5]  cf. LSC 2

[6]  cf. LSC 4

[7]  cf. LSC 5

[8]  cf. LM 1, 3; LTC 6; AP 6

[9]  cf. Oração diante do crucifixo

[10]  cf. 1Cel 22

[11]  PRUDENTE NERY, Frei (in memoriam). Reviver o sonho de Francisco e  Clara de Assis. In: http://ffb.org.br/conteudo.php?id=10105&categoria=artigos

[12]  O Testamento do Santo faz referência a essa ação de Deus

[13]  1 Cel 22; cf. tb.  LTC 25; LM 3,3-4

[14]  2Cel 10; cf. tb. LM 2,1; LTC 13

[15]  Na ótica feminina, sobretudo no aspecto, esta palavra corresponde ao cultivo das relações humanas de convivência, tendo como a observância dos mesmos ideaiss de vida.

[16]  cf. Legenda de Santa Clara 14

[17]  “Olhe dentro desse espelho todos os dias, ó rainha, esposa de Jesus Cristo, e espelhe nele, sem cessar, o seu rosto, para enfeitar-se toda, interior e exteriormente, vestida e cingida de variedade (Sl 44,10), ornada também com as flores e roupas das virtudes todas, ó filha e esposa caríssima do sumo Rei” (4ª Carta a Inês de Praga 15-17).

[18]  Trata-se muito mais do que um mero espelho. Na linguagem de Clara, o Espelho é o próprio Filho de Deus que devia ser contemplado todos os dias. Desse modo, o religioso e a religiosa podiam ter um alcamce maior no seguimento de Jesus e do seu Evangelho.

[19]  cf. 3ª Carta a Inês de Praga, 12

[20]  cf. 2ª Carta a Inês de Praga, 11

[21]  Obviamente, esta motivação de Clara tem ressonâncias em cada franciscano e franciscana de hoje, que procura recordar e alimentar o referencial.

[22]  PRUDENTE NERY, Frei (in memoriam). Id. ibid.

Sobre o autor
Frei Luiz Pinheiro Sampaio
Luiz Pinheiro Sampaio, Sacerdote. Nasceu na cidade de Novo Oriente, Ceará, aos 27 de maio de 1964. Membro de uma família de raízes e valores católicos, ingressou na Ordem dos Frades Menores Capuchinhos (OFMCap).

Iniciou sua formação religiosa no ano de 1988, quando começou os estudos de Filosofia, em Goiânia (GO), tendo obtido a licenciatura pela então Universidade Católica de Goiás (UCG). Entre os anos de 1992 e 1995, cursou Teologia em Campo Grande (MS). Posteriormente, nessa mesma cidade, em 2009, iniciou o curso de Letras, na Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Problemas com a visão, levaram-no a interromper os estudos, no início do segundo período letivo.

Ordenado sacerdote no ano de 2003, trabalhou em várias localidades, como Nova Fátima (GO), Piracanjuba (GO), Caseara (TO), Campo Grande (MS), Ceilândia (DF). Atualmente, exerce seu ministério na capital de Goiás.