Vocação de Frei Bernardo e nossa vocação
Os Atos do Bem-aventurado Francisco narra que vendo Francisco de Assis no início de sua conversão, Bernardo ficou em dúvidas se aquele pobrezinho tinha realmente algo encantador. Segundo os escritos, certo dia Bernardo convidou aquela figura diferente para jantar em sua casa e também passar a noite. Francisco aceitou.
Bernardo tinha a intenção de investigar, ver mais de perto como era esse homem. À noite, estando no mesmo quarto, fingiu que estava dormindo. Francisco achando que seu amigo já se entregara ao sono, pois se a rezar. Passou a noite toda dizendo “Meu Deus e meu Tudo”. Bernardo, abrindo os olhos para aquele franzidinho frade, ficou admirado com tamanha devoção.
Alguns pontos parecem ser interessantes neste episódio dos Atos. Primeiro a curiosidade de Bernardo. Chamar para espiar, para ver mais de perto. Nisto já vemos certo encantamento pelo mistério que Francisco apontava. Em Bernardo existia algo que já o incomodava. Ficou de surdina, atento. E viu o pequeno homem rezando a Deus com todo fervor: “Meu Deus e meu tudo”.
A postura de esvaziamento de Francisco o colocava como que uma transparência diante do mistério. Bernardo foi tocado e logo decidiu seguir as mesmas pegadas do santo.
Diante do mistério, o pobre de Assis era só abertura. Deixava que Deus fosse, por isso a expressão: “Meu Deus e meu tudo”. Pensar tal postura hoje é desconcertante. Vivemos em um tempo em que se deve cultivar a autoestima a todo preço. Viver bem. E Deus? Esse não pode aniquilar meu ‘euzinho’. Tem, pelo contrário, fazer tudo que eu quero. Como se a Divindade fosse submissa aos desejos egoístas.
Francisco mostra uma postura totalmente inversa. O centro é Deus. Unicamente Ele. Deus não é um instrumento, um meio para minha realização. Ele realiza-se em mim. Como disse Francisco certa vez: “somo servos inúteis”. Para a mentalidade atual isso é um escândalo e tais escritos são tidos como ‘arcaico’, ‘medieval’ (pejorativamente), ‘que, tomado fora do contexto de Francisco, não pode ser entendido’, ‘Francisco era muito duro consigo mesmo, chegou a pedir desculpa para o irmão corpo’, etc. e tantas outras argumentações e justificativas que minimizam ou até mesmo eliminam a mensagem dos textos.
A busca de realização pessoal (egoísta) é tamanha hoje que, nas diversas releituras desses textos, se polui a fonte. Diz o que o texto não quer dizer. Transforma o vigor originário dos primeiros frades em ‘açúcar refinado’. O amor forte pelo romantismo, pelo sentimentalismo ou pelo racionalismo.
“Meu Deus e meu Tudo” é expressão mais profunda de um encontro pessoal com Jesus Cristo. Não se trata de um conceito ou de ideologias, mas é uma experiência religiosa. Que religa o homem a Deus, ao seu fundamento. Tudo mais é secundário.
Verdadeira autoestima está fincada na consciência clara que não somos fonte, mas caminhantes que se deparam com a fonte. Ela é nosso sustendo. Podemos dizer de forma radical que ela (fonte: Deus) ‘somos nós’, pois sem Ele somos nada, não existimos. Nossa construção se ajusta e se equilibra quando descobrimos os fundamentos de nossa existência. O restante são castelos construídos na área. Só Deus é. Só Ele é “tudo”.