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Os Frades Capuchinhos e a aldeia São José dos índios Xavantes

Publicado por Frei Sermo Dorizotto | 19/04/2016 - 14:51

Confira o texto adaptado por Frei Sermo, com um relato da história dos Frades Capuchinhos e a aldeia São José dos índios Xavantes. 

"Os lisonjeiros resultados obtidos nesse tempo passado entre os índios (no rio Verde - Mato Grosso), dos quais agora conhecíamos o caráter, as tendências e os costumes, fizeram nascer em nós o desejo de partirmos para os lugares vizinhos a fim de estendermos nossos cuidados aos outros selvagens abandonados. Obtida, então, a benção do Superior e com a ajuda de outros Confrades que prosseguiriam a assistência aos índios do Rio Verde, pensamos em preparar uma expedição ao Ribeirão das Marrecas, afluente do Paraná, no Estado de São Paulo.

Assim, a 1º de março (1913), estando tudo pronto, partimos a bordo de uma barca que nos foi cedida pela Companhia de Viação S. Paulo. A descida foi ótima e, com a ajuda de Deus chegamos sãos e salvos, pela tarde, à foz do Ribeirão. Com breve oração comum, agradecemos de coração ao Senhor e, após uma ceia bem parca, preparamos a cama dentro da própria barca, onde passamos aquela noite e a noite seguinte.

Os primeiros dias foram dias de intenso trabalho, em meio a um dilúvio de borboletas de todo gênero e tamanho, de abelhas silvestres, de mosquitinhos pequeníssimos (mosquito pólvora) e de muitos outros insetos e bichinhos que seria longo enumerar.

Tratava-se de cortar árvores, de limpar e preparar pelo menos alguns poucos metros de terreno para nele levantar uma tenda ou barraca provisória; mas, o trabalho foi tão difícil e penoso que, apesar do esforço de todos, precisamos de quase três dias para conseguirmos o que desejávamos. Construída a tenda e postas em local seguro das intempéries as bagagens mais importantes, fomos à procura do local que fosse mais apto para a futura residência. Não havendo por ali nem estradas nem caminhos na mata, tivemos que ir de barco (bote) (que tínhamos trazido do Rio Verde), ribeirão das Marrecas acima, por quase dois quilômetros; desembarcados, fomos para cima pelo caminho feito já em setembro do ano passado (1912), pelos nossos Confrades que fizeram uma inspeção no local. À distância de 100 metros acima, pela colina, encontramos o local já então desmatado, mas agora cheio de mato, de espinhos e arbustos. Após breve descanso, começamos a dar um giro ali, à procura do local para a residência. Esse também foi um trabalho bastante lento, pois tínhamos que abrir passagem de todo lado, à custa de podão e facão. Por dois dias seguidos trabalhamos para isso, voltando, à tarde, ao Paraná, refugiando-nos na velha barraca que, não sendo nova, mal nos defendia das intempéries. Enfim, determinado o local, começou-se a abrir a área com toda a pressa, derrubando tudo o que se encontrava, exceto as plantas grandes e umbrosas. Foi um trabalho forçado, em meio a grande número de moscas, mosquitos, abelhas, borboletas e de mil bichinhos que nos atormentavam um pouco, como se quisessem vingar-se da invasão de seus direitos, querendo nós nos estabelecermos ali, onde eles, até aquele dia, tinham sido os únicos e legítimos habitantes e donos. Uma coisa, porém, tínhamos de bom, e que não podíamos absolutamente ter no Rio Verde, ou seja, noites tranquilas, pois aqui não temos os mosquitos transmissores da malária. E oh! Como era bom dormir sem aqueles odiosos companheiros! Dormir tranquilos e tão bem, após um dia de intenso trabalho. Quanto à multidão de bichinhos diurnos compreendíamos bem que era coisa passageira, isto é, deveriam desaparecer logo que começássemos a persegui-los a ferro e fogo, quer dizer, a derrubar a mata.

 



Em poucos dias de assíduo trabalho nos foi possível erguer duas grandes barracas, uma para morada e outra para depósito de bagagens, e pouco depois, uma terceira, menor, mas nova, e que nos serviria de capela onde, para nossa felicidade e consolação, celebramos o sacrifício da S. Missa e nos reunimos para a oração comum. Assim instalados do melhor modo, tratamos de transportar os caixotes, o que também nos custou não pouco trabalho. Então, nos concedemos um pouco de descanso a fim de logo darmos início a outros trabalhos urgentes. Entre estes, devemos enumerar uma cerca de arame farpado em volta da barraca, em forma retangular e que tem mais ou menos 50 metros de comprimento e cerca de 40 de largura. Este circuito forte e bem feito, nós devemos à habilidade e ao amor de nosso caríssimo Luciano Peterlini que, enfrentando não pouca fadiga, bichos, insetos de toda espécie, soube iniciar, prosseguir e levar a cabo tal empresa.

Trabalhou-se febrilmente para tornar o mais cômoda possível e bem disposta a nova residência de Ribeirão das Marrecas, onde se decidira instalar nossa morada, não se tornando mais possível permanecer na umidade e malária do Rio Verde.

Os índios, que já haviam entendido nosso projeto, mostravam-se muito contentes por acompanhar-nos e esperavam ansiosamente o dia da partida. Por isso, quando viram as barcas prontas para a carga, entregaram-se a vivas e, diria, infantis manifestações de alegria, as quais se repetiram nos dois dias empregados na carga dos trastes e das provisões.

Na manhã de 4 de outubro (1913), tudo estava pronto para a partida. Após o café de costume, fizemos sinal aos índios, de que estava na hora da partida; eles se retiraram um pouco para suas cabanas e logo se apresentaram, todos já preparados para a viagem: os homens com seus arcos, flechas, machadinhas, etc. e as mulheres, com os filhos e respectivos jacazinhos cheios de utensílios e roupas. Todos estavam alegres e festivos mais que de costume. O fato tinha algo de extraordinário e não podia senão despertar em todos uma sincera alegria.

Tivemos, então, o embarque: todas as mulheres com as crianças, rapazes e velhos, ocuparam o velho batelão, dirigido por três índios muito práticos; Fr. Francisco, Adolfo, com dois outros índios fortes dirigiam nossa barca nova carregada de caixas, sacos e outros trastes; enfim, P. Bernardo, fr. José e eu, com 3 índios musculosos subimos no barco da Companhia, que era o maior e mais carregado de todos. Pelas 8 e meia da manhã, depois de três tiros de fuzil e repetidos sons de trombeta, as três barcas se moveram para descer o Rio Verde e entrar logo no espaçoso Paraná, rumo ao Ribeirão das Marrecas, que se acha a cerca de 3 léguas e meia do Rio Verde, mas do lado oposto, no Estado de S. Paulo. Precedia a barca velha com os índios e as bagagens; vinha, em seguida, a barca nova e por último a maior de todas que era como a barca de comando dessa frota de nova espécie. Espetáculo talvez nunca visto nestes locais!

Parecia uma verdadeira frota ou uma expedição marítima. Pena não haver ninguém para admirar esse espetáculo que dificilmente, creio, se repetirá!!! A pequena frota (chamarei assim) procedia em toda boa ordem; em cada barca, a mais perfeita ordem e a mais expansiva alegria. Nenhum incidente, graças a Deus, veio a perturbar a paz e o contentamento comum, estando excelente o tempo e esplêndido o dia. Pouco abaixo do Rio Verde, fr. Bernardo tocou a corneta para saudar os lenhadores que trabalham na ilha, quando, eis que a barca da frente aproxima-se da barranca do rio e para; pouco depois, a segunda faz o mesmo. Pensou-se logo que houvesse qualquer novidade nas barcas ou no pessoal, mas responderam que tomaram o som da corneta como sinal de parada para o almoço. Não era. Mas, sendo que todos estavam já bem dispostos para o trabalho das mandíbulas, decidimos alcançar a barranca também com a terceira barca e assim alimentar as turbas famélicas, saciando o apetite já bem desenvolvido.

Naquele momento nos recordamos do milagre narrado no Evangelho e operado por Nosso Senhor Jesus Cristo em favor das turbas que, devotas, o seguiam no deserto.

Durante a parquíssima refeição de feijão e arroz, acompanhada de água límpida e cristalina, reinou sempre a alegria e o contentamento de todos.

Após um breve repouso as barcas partiram pela segunda vez, e na mesma ordem, rumo ao Ribeirão das Marrecas, aonde chegamos felizmente pelo meio-dia, após 3 horas e meia de viagem pelo esplêndido Paraná. Atracados os três barcos, todos nos dirigimos para o acampamento, cansados, mas contentes e satisfeitos por tão feliz viagem. Os índios foram para a casa ou cabana maior, já há tempo preparada para eles e ali descansaram. Assim celebramos a festa de Nosso Seráfico Pai São Francisco, ao qual, depois de Deus, devemos ser reconhecidos pelo bom sucesso desta viagem muito importante e não sem perigos. Nos dias posteriores os índios nos ajudaram de boa vontade no descarregar as barcas e no transporte das caixas e de outras bagagens para a residência. Ajudaram-nos também em outros trabalhos e sempre com a mesma boa vontade. Para nós foi realmente providencial e uma graça especial do Senhor ter conosco esses amigos em tal ocasião.

Sem os índios, essa viagem e transporte de coisas teriam sido muito difíceis para nós, pesadíssimos, e teriam como final alguma doença devido ao trabalho excessivo e muito superior às nossas forças. Também desta vez sejam dados louvores a Deus, com agradecimento a Ele por este novo grande benefício. Depois de alguns dias que ficaram aqui conosco, os índios mostraram desejo de ir para a outra margem do Paraná e pediram-nos licença. Tendo-a, saudaram-nos e, juntamente com suas famílias, foram, com o batelão (que deixamos à disposição deles), para a outra margem do Paraná, internando-se nas matas, em direção às suas moradas que não são muito distantes do rio. Agora estamos muito mais próximos deles do que quando morávamos no Rio Verde. Frequentemente eles aparecem nas margens e nos gritam com tanta força que nunca pensaríamos tivessem tamanho fôlego.

Eles voltarão, em breve, porque a localização desta nossa residência é do gosto deles. Aqui esperamos reuni-los e formar uma verdadeira colônia, a primeira colônia de cristãos entre os "índios Xavantes".

Texto traduzido da revista italiana "Il Massaia".

Infelizmente Frei Júlio de Piracicaba sofreu grave acidente com arma de fogo. Frei Serafim de Piracicaba morreu afogado em 2 de dezembro de 1914. Outros frades, num total de doze, contraíram a malária e aos 29 de janeiro de 1915 frei Aurélio de Smaragno aí celebrou a última missa.

Antes da partida, os missionários plantaram um cruzeiro junto ao Ribeirão das Marrecas, nas proximidades do Rio Paraná, onde hoje é a cidade de Panorama. A aldeia desapareceu, mas São José continuou ai como protetor!"

Sobre o autor
Frei Sermo Dorizotto

Frei Sermo Dorizotto é frade Capuchinho da Província dos Capuchinhos de São Paulo e hoje reside na Fraternidade do Postulantado em Piracicaba - SP