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Homilia Dominical do XXIV Domingo do Tempo Comum - ano B

15/09/2018 - 08h57
Frei João Santiago

XXIV Dom Comum Marcos 8, 27-35

As boas escolhas podem provocar reações que trazem sofrimento

“‘O Filho do homem sofrerá muito ...‘Se alguém quiser vir comigo, renuncie a si mesmo ... . Pois quem quiser salvar a sua vida, há-de perdê-la; mas quem perder a sua vida por minha causa, salvá-la-á’”.

Cruz, sofrimento e Renúncia. A “cruz” era a pena capital para quem ousasse afrontar um mundo marcado pela escravidão e pela força das armas. Ora, o Filho do Homem pregando e vivendo valores como acolhida, igualdade, mansidão, partilha, etc. e apresentando a Deus como Pai de todos, desmontava toda a mentalidade mundana que mantinha e sustentava aquele mundo. Jesus anuncia um mundo alternativo ao mundo do pecado. Inexoravelmente o cristão assumirá a cruz, pois é contrário ao mundo pecador marcado pela cupidez dos olhos e da carne, marcado pela soberda e pelo “toma-lá-da-cá”, pela mentira, pela calúnia. Temos a cruz de cada dia quando cotidianamente procuramos ser fiel ao cônjuge, à família, quando procuramos ser honestos, verdadeiros, e quanto nos esforçamos em busca da paz, da superação, do sadio respeito a si próprio e aos demais. A cruz de cada dia também pode ser solidão que venhamos a sofrer porque preferimos mais a fidelidade a Deus do que o mal, o pecado.

Renunciar é largar, soltar certas crendices e certezas, e também abandonar fantasias, teimosias, falsas seguranças, encrencas, rixas e remorsos. Tenhamos cuidado com aquilo que elegemos como causa de nossa sobrevivência, estima e valor. Pode ser uma pessoa, até uma boa pessoa. Pode ser o próprio corpo, o sucesso, os jogos de interesses ou a conta bancária. Cuidado, pois pode ser que estejamos sabotando o nascimento, o vir à tona da vida do Eterno em nós. “Cortar” apegos, afetos e preferências que só fazem mal, faz bem.

Um casal relutava muito em decidir-se por ter um bebe. Os dois ficavam imaginando o quanto a vida mudaria, as férias, as finanças e as preocupações. A vida exige decisões, e temos que escolher se vamos ficar na mesma ou vamos apostar na vida, no serviço e no amor. Por fim, o casal decidiu pelo bebe: “... o que perder a sua vida por amor do Senhor e do Evangelho, salvá-la-á”.

Jesus, Nosso Senhor, nos desafia a grandes saltos, nos pede que percamos os medos e o medo da cruz, pois somente assim seremos livres.  Porém, mais do que coisas, o pedido maior é uma precisa renúncia, aquela que só o amor a uma pessoa torna possível. Não se trata de renunciar a isto ou aquilo, a este ou aquele, mas renunciar a si próprio, isto é, deixar-se, “perder-se” por amor ao Senhor (cf. Lc 5, 11):“Seduziste-me Senhor, e eu me deixei seduzir numa luta desigual, dominaste-me, Senhor, e foi Tua a vitória ...” (Jer 20, 7).

Você, escolhendo a verdade e o bem certamente terá que afrontar as adversidades (“cruz ou cruzes”) que virão, aparecerão. E agora? Será o momento da decisão: há de preferir o bem e a verdade, ou preferirá trair a verdade, o bem, a própria vida, optando por levar uma vida meramente cômoda?

O sofrimento, a “cruz”, pode ter sentido. Quando você teve que aceitar incompreensões por ter tomado a decisão justa e correta, o sofrimento, de maneira nenhuma aparecerá como absurdo, mas como o preço a pagar por uma decisão que só fez bem. Por vezes deixar certo modo de pensar e parar de tomar certas atitudes nefastas exigem de nós renúncia que é vivida como sofrimento. Neste momento é bom não esquecer o fruto que nascerá como fruto da renúncia: um bom guerreiro deve lembrar que foi feito para vencer batalhas.

Jesus se diz “Filho do Homem”. Quando encontramos alguém especial, dizemos: “Essa é uma pessoa diferenciada”. Achar que uma pessoa seja “diferenciada” significa que o ser humano pode ser diferente da maioria, pode ser melhor. Jesus toma para si, encarna, o título “Filho do homem”, pois é o Messias servidor da humanidade. “Filho do Homem” é o “diferenciado por excelência”, modelo do verdadeiro rosto humano, do verdadeiro ser humano tal como Deus sonhou e sonha.

Jesus se identifica como “o Filho do homem”, o homem de verdade que participa da vida do Eterno. Quem é o nosso modelo de homem? O rico Herodes? O autoritário Pilatos? O poderoso imperador? Os mestres da lei? Os opulentos saduceus?  Um dia, Jesus apresentou um modelo de homem: o bom samaritano. Este homem deixou até funções litúrgicas para cuidar de um sofredor. O modelo de homem, portanto, é uma atenção para com a dor do outro. Nosso Senhor foi tomado, dominado, digamos assim, pelo chamado do Pai amoroso e olhava mais outra coisa senão o seu coração ardente de amor e a dor do outro.

Não havia  na alma do Senhor Jesus espaço para certas fantasias (um Messias esmagador de inimigos, por exemplo), mas havia, sim, uma Voz:  “O Senhor abriu-me os ouvidos; não lhe resisti”; “... Vivo, vos escrevo, desejando morrer. Meu amor está crucificado. Não há em mim um fogo que busque alimentar-se da matéria, apenas uma água viva e murmurante dentro de mim, dizendo-me em segredo: ‘Vem para o Pai!' [...]” (S. Inácio de Antioquia). Jesus vivia em escutando essa voz, em rezando, em amando, em ensinando, e como bom atleta foi se preparando para aquele grande momento que expressaria a grandeza de um homem. Jesus se entregou e se rendeu à essa Voz interior, e não ao “euzinho” cheio de vãos pensamentos, manias e delírios de grandeza”. Sente-se amado pelo Pai e amando a humanidade, não há dentro dele espaço para odiar, para malícias, mas se sente inflamado por um momento de paixão, e a cruz será a ocasião de realizar isso.

O Evangelho de Lucas, para expressar o que se passava na alma de Jesus quando ele anunciou sua oferta de vida, põe uma criança em evidência: “Se não vos tornardes como crianças não entrareis no Reino”. Na época havia essas crianças que trabalhavam em lugares, tipo “pequeno comércio”. Elas só tinham uma coisa: a capacidade de “servir”. Viviam naquela felicidade de estar de bem com seus pais ou patrões, de se verem “úteis”, serviçais.

Jesus se vê assim: tomado por este estado de criança e serviçal. Simplesmente sente palpitar dentro dele este estado de espírito. E assim caminha para Jerusalém. Nele não há nada que bloqueie a vida como dom: nem as maldades, nem as traições, nem o cansaço, nem as frustrações, nem as injustiças, nem as mentiras, nem as calúnias, nem as fofocas, etc. Há, em Jesus, um tremendo desejo alimentado pelo Pai eterno. Jesus viveu sempre mergulhado no ciclo amoroso, no Espírito Santo que havia entre ele e o Pai, e os acidentes de percurso (as tramoias e malícia humana) não atingiam ao seu espírito. Importa não perder a adesão à esta atração, se deixar levar pelo desejo do amor ao Pai e à salvação da humanidade.

Um filme nos fez lembrar Madre Teresa em seu grande e belo colégio no qual era professora e da sua decisão de deixar aquele colégio para morar na rua com os miseráveis párias da India. Que Voz é essa que a levou a abraçar a Cruz? Jesus pede de não resistir e essa Voz e pede para isso que se renegue a uma vida centrada egoisticamente em si, na opulência, no vislumbre e embriaguês de si mesmo, na preguiça, no rancor e na ostentação.  Jesus promete a vida, e a vida acontece (a vida que vence a morte) quando não se nega a parte melhor de nós, quando não se perde a esperança mesmo diante da difamação, da calúnia, da morte. E por que não se perde a esperança? Porque tem a Voz que nos chama, tem o Pai de Jesus que nos chama a fazer essa travessia. A confiança não é em nós, é nele.

Não nos neguemos, pois em cada humano palpita e lateja a ânsia de realizar essa passagem, essa travessia: deixar a margem e avançar para águas mais profundas; sair da zona de conforto e seguir a Voz, fazer da vida um grande “presente”, um alimento que nutre o sorriso e a salvação de tantos irmãos e irmãs.

O bom investimento por fazer. Jesus também fala do retorno que se tem quando se pauta a vida segundo o modelo do Filho do Homem: não perderá a vida, ressurgirá (“... o que perder a sua vida por amor de mim e do Evangelho, salvá-la-á”). Isto é: o melhor investimento a fazer com os anos que se passam de nossas vidas é usá-los em serviço. Neste sentido podemos nos perguntar se as pessoas que passaram por nós saíram enriquecidas por terem convivido conosco. Qual legado deixo por onde passo?

Jesus é muito pragmático quando fala de ganhar ou perder a vida. Eu tenho uma vida e tenho que fazer um bom negócio com ela, isto é, obter lucro. Ter lucro na vida ou lucro de vida é ter futuro, ter um amanhã perene. Não há muitas opções para se dar bem na vida, para ter futuro e um amanhã perene, mas só uma: renunciar a si mesmo, tomar a própria cruz, extrair o máximo de bem que se traz dentro de si, e seguir o Mestre rumo a dois destinos. O primeiro destino é passageiro, e é a paixão, a cruz. O segundo é perene, e é a ressurreição. A regra do jogo da vida do Eterno não é tão difícil entender, é fácil: aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas o que perder a sua vida por amor do Senhor e do Evangelho, salvá-la-á. 

Jesus também fala de um fracasso, de uma vida em falência: a vida que se acomoda. Temos que fazer um bom investimento com a vida. O Evangelho de hoje diz que podemos investir pessimamente na vida procurando salvá-la, não dando frutos, recalcando-a em um recinto por demais estreito, não deixando fluir o amor, o perdão e a solidariedade, por exemplo. Tal investimento não trará muito lucro, terá sido investimento em coisas sem futuro. Será uma vida que traiu a si mesma quando traiu o bem, a verdade, o seguimento de Jesus: “... o que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á”.  Texto completo, solicitar a[email protected]

Fonte: Capuchinhos do Brasil /CCB

Por Frei José Lázaro Oliveira Nunes (Fraternidade Cúria Provincial N.S. do Carmo MA/PA/AP/CUBA (São Luís/Centro))

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