Tamanho do Texto:
A+
A-

A PANDEMIA E A ATUAÇÃO DOS CAPUCHINHOS DO NORDESTE

18/05/2020 - 10h22
Por Frei José de Sá de Araújo Neto, OFMCap

     Aos vinte e seis de fevereiro do corrente ano, o Ministério da Saúde confirmou o primeiro caso do novo coronavírus no Brasil. Nove dias após, o Secretário de Saúde da Bahia informou que também o Nordeste acabara de receber a confirmação da presença do vírus no Estado. Contudo, as medidas tomadas ainda eram as minimamente aconselhadas, uma vez que, até então, o agente etiológico da COVID-19, um novo coronavírus (SARS-CoV-2), tinha sido “importado” por meio de viagens internacionais. 

     Em meio ao número crescente de casos da COVID-19 em todo o território nacional, um antagonismo instala-se: o conhecimento científico é colocado na linha de frente, não somente no combate ao novo agente infeccioso, mas também contra uma insurreição de ignorância. Caso nos seja permitido o uso de neologismo, a inconsequente “agnosiologia” embalada - e talvez até financiada - por uma ala política, que mais aparenta ser uma turba de paranoicos cruzados, anseia ostentar no peito a vanglória de lutar contra insanas ideologias que presumidamente destroem os bons costumes do povo brasileiro. Em meio a todo esse achincalhe à capacidade cognitiva de cada um dos brasileiros e às potencialidades da pesquisa científica, o único que, determinadamente imparcial - haja vista “obedecer” unicamente ao seu código genético – sai vitorioso é o SARS-CoV-2. 

     Podemos nós pensar que, agora, percebamos de forma mais contundente ser a morte a possibilidade mais premente de todos os que, justamente, ainda a vislumbram como possibilidade. Esta, por sua vez, quando passa à concretude da existência, põe termo a toda e qualquer outra possibilidade. Até mesmo a economia, movida a desigualdades e esmolas maquiadas de empatia, predomina no campo da vida. Entretanto, a tabela dos lucros, ao ser posta ante a vida, que, por mais variados caminhos percorridos, há de desaguar na morte, rende-se à cegueira da ambição que se alimenta do próprio fim. No exato momento em que estas linhas estão sendo escritas e embora os números e as estatísticas sejam apáticos, mais de duzentos e quarenta mil casos confirmados e mais de dezesseis mil mortos dizem-nos que, o que nos distingue como humanos não é somente a linguagem proposicional e a racionalidade (como quisera a Filosofia Clássica), mas o sentimento refinado.  

     Neste contexto, brevemente exposto, a única medida cabível a cada um de nós é recuar da marcha da ignorância e lutar contra o vírus ficando em casa. Ora, isso não significa que a imobilidade deve instalar-se e deixar que as traças do comodismo devorem a uma parcela da população, enquanto outra sucumba pela devassidão da fome. Não obstante a rotina dissolva-se, os padrões comportamentais mudem e os afetos gritem por contato e reciprocidade, a humana condição é profundamente marcada pela inventividade. Por mais que o ambiente se imponha e os fatores sejam cada vez mais condicionantes, a escolha ainda será o dado de nossa participação na existência. A angústia diz-nos que transpomos a rigidez das estruturas dadas, aponta-nos o desfiladeiro em que caminhamos e desvela o valor da liberdade humana. Dessa forma, a escolha, por mais fatores que constituam as condições pelas quais passamos, ainda é a marca humana no mundo.

     Voltemos, por “de-cisão”, um corte que abre possibilidades e encerra outras, o nosso olhar para o cessar das atividades, exceto as ditas essenciais. Este cessar faz-nos estrangeiros em nossas próprias residências e, no passo galopante do tempo, inaugura um “novo normal”. Dentre tantas atividades que tiveram de ser, parcial ou totalmente, interrompidas, tomaremos as que concernem ao campo religioso e, mais propriamente, no que tange aos Frades Menores Capuchinhos da Província Nossa Senhora da Penha do Nordeste do Brasil (PRONEB).

     Constituída por doze fraternidades distribuídas em quatro Estados (Pernambuco, Alagoas, Paraíba e Rio Grande do Norte), esta província é caracterizada por sua forte atuação em dois campos: o devocional e o pastoral. Graças ao grande ícone da fé popular, o Venerável Frei Damião de Bozzano, os frades do Nordeste são conhecidos em todo o Brasil por promoverem três grandes devoções, a saber, a Nossa Senhora da Penha, a São Felix de Cantalice e a Frei Damião; e empenham-se na promoção de projetos sociais, visando amenizar a dor dos que são marginalizados pela máquina social excludente e tentando construir alternativas de superação. Conforme nos ensinou o “santo do Nordeste”, continuar a missão de Jesus na terra é o que deve mover cada um dos cristãos, por suas promessas batismais. Os frades, interpelados pela consagração religiosa a “observar mais de perto o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo” (Regra Bulada), são desafiados a encontrar, em tempo de isolamento social, novos meios de aproximação daqueles que mais necessitam de uma presença acolhedora.

     Mais uma vez uma pandemia assola a humanidade e mais uma vez os capuchinhos são convocados a atuar em favor dos fragilizados. Basta que consultemos os livros de história da Ordem e veremos que a sua fundação (A Bula Religionis Zelus foi assinada pelo Papa Clemente VII em 1528) deu-se em meio a um surto da peste que, dois séculos antes, já havia dizimado, aproximadamente, 30% da população europeia. O trabalho dos primeiros capuchinhos no Hospital dos Incuráveis, cuidando pastoralmente das pessoas empestadas, fez com que o nome dessa Ordem se de fundisse em fama de santidade. A peste espalhava-se por toda a Europa e, ao longo dos séculos XVI e XVII, na Itália, vários confinamentos, chamados lazzaretti e geralmente localizados nos limites das cidades, foram sendo criados para receber todos aqueles que chegavam empestados. Nesses locais, os frades capuchinhos não só atuavam pastoralmente, mas também exercendo atividades básicas para o sustento dos confinados que lá, na verdade, estavam abandonados para morrer.

     Nestes tempos que são os nossos, os conventos capuchinhos de todo o mundo e, inclusive, os do Nordeste do Brasil estão se movendo em um esforço de fé e caridade. Para trazer, hodiernamente, a razão pela qual, nos séculos passados, os frades capuchinhos começaram a ser chamados como frati del popolo (frades do povo), uma contínua reforma chama toda a Ordem a abrir-se aos sofrimentos, que apaticamente estão sendo concentrados em números. Os projetos sociais, em grande medida interrompidos, estão sendo substituídos por ações mais direcionadas para tantos moradores de rua que, além de não terem condições de se isolarem, estão sofrendo com a fome ainda mais devastadora. A distribuição de cestas básicas em comunidades carentes também vem se mostrando uma ação muito proveitosa para os que tiveram sua fonte de renda, parcial ou totalmente, comprometida. 

     Por conseguinte, o Espírito Santo, que para Francisco era o verdadeiro Ministro Geral da Ordem, suscita sempre ventos de ressurreição em tempos de morte. A abertura à transcendência é, primeiramente, abertura ao outro; um sair de si para encontrar-se ferido naqueles que, pela miséria, abandono e fome, trazem na carne os sofrimentos de Jesus. Somente assim poderemos entrar em comunhão com o “Totalmente Outro”, que se faz inteiramente conosco. Na parábola do Bom Samaritano (Lc 10, 25-37), somos convidados a encontrar Jesus não só no samaritano compadecido, mas também no homem caído e coberto de feridas, deixado para morrer à revelia de tantos que por ele passam. Assim como perguntara aos fariseus, hoje, Jesus igualmente nos questiona acerca da capacidade de nos fazermos próximos dos caídos e invisíveis a tantos olhares indiferentes.  


Frei José de Sá de Araújo Neto, OFMCap

Pós-Noviço Capuchinho, discente do Curso de Licenciatura Plena em Filosofia pelo Centro de Teologia e Ciência Humanas (CTCH) da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Desenvovendo pesquisa em Fenomenologia. 

Fonte: Capuchinhos do Brasil /CCB

Por Maurício Soares de Souza (Convento São Félix de Cantalice)

Deixar um comentário